O metal progressivo e o metal extremo parecem ser duas categorias pouco afeitas uma à outra. No entanto, já há uma tradição de bandas que unem o melhor das duas e criam algo novo e muito bom. Ao lado do Enslaved, Borknagar lidera essa tradição e afirma sua posição em seu décimo segundo álbum de estúdio, “Fall” lançado em fevereiro deste ano pela Century Media e no Brasil em CD pela Mutilation Records.
Ao longo de oito épicas canções distribuídas em 54 minutos, somos levados às cimeiras das regiões mais afastadas ao norte do globo terrestre e apreciamos tanto a beleza natural daquela região como a beleza artística da cultura nórdica. Certamente a temática lírica da veneração da região e da cultura escandinavas não é algo novo e chega a ser mesmo um clichê do metal extremo do norte da Europa, presente em bandas as mais diversas. Todas elas desenvolvem o caminho desbravado primeiramente pelo Bathory do Quorthon, falecido há vinte anos. Chega a ser inevitável pensar que talvez tenha sido esse o caminho que Quorthon teria seguido se ainda estivesse vivo: unir suas tendências progressivas com o Viking Metal e o Black Metal nos quais foi pioneiro. De qualquer forma, assim como o Enslaved, o Borknagar faz isso sem apelar a fórmulas prontas, com maturidade e bom gosto, tanto na parte lírica quanto musical.
São oito faixas tão bem e cuidadosamente construídas que fica difícil destacar uma em detrimento das outras. Vale, portanto, considerar separadamente cada uma delas. A ordem em que elas estão dispostas é tudo menos casual. Começamos com “Summits”, faixa que nos conduz ao topo de alguma das mais altas montanhas do norte norueguês. Quem empreende tal escalada se mostra apto a enfrentar todos os desafios. E o percurso não é fácil. São muitas as adversidades e provações, mas a ética da autossuperação está colocada como horizonte. E assim segue o bravo homem, nessa narrativa que pretende reconectar o ser humano com a natureza. A linguagem abstrata, porém, não deve nos fazer assumir tão ingenuamente essa antropologia mitológica nórdica, pois logo a segunda faixa nos apresenta um hino nórdico (“Nordic Anthem”) de resistência ao universalismo abstrato do cristianismo e outros ismos que ameaçam esvanecer as identidades locais, no caso, a escandinava. “As pessoas do norte não se curvarão a nenhum Deus!” (Northerners won’t bow to any god!) Essa frase pode ser interpretada na chave da resistência de alguns países ao rumo atual da globalização, no caso, da União Europeia. Tal forma de pensamento tem se expressado em certo identitarismo que chega, em casos extremos, a um nacionalismo que pode descambar em xenofobia e fascismo. Não creio ser esse o caso aqui, pois não se trata de expressão de ressentimento ao outro, mas auto-afirmação daquele que se perde em busca da própria essência nos recônditos mais afastados da natureza. Pelo menos é assim que a banda explica seu hino na apresentação do vídeo clipe lançado na página do YouTube da Century Media. É o que também se vê na trinca de faixas seguintes: Afar, Moon e Stars Ablaze. A busca por decifrar os enigmas do universo no próprio universo, sem apelar a divindades transcendentes, parece ser essa a trilha seguida pelos noruegueses, que aqui, diferentemente de outras bandas “folk” ou “vikings” remete-se menos à mitologia nórdica do que à prática cultural de investigação dos fenômenos naturais. Como Sísifo que incansavelmente carrega sua pedra até o topo da montanha. Em “Unraveling” (Decifração ou Descoberta) a referência não é à mitologia grega, mas ao livro “O mito de Sísifo” de Albert Camus (1942) e seu embate com o absurdo da existência. Cito, como ilustração, a última estrofe dessa faixa:
Absurdism, the poet’s creed
Where reason fades and wills succeed
Oh, thinker’s spirit, never cease to inspire
Let’s dance with chaos and never tire
Sisyphus’ Boulder!
Me concentrei na parte lírica até aqui, mas é claro que vale destacar a excelente qualidade musical desse trabalho. A banda já vem há muito tempo nessa trilha “Prog” e seus últimos trabalhos como “Winter Thrice” e “True North” já demonstraram do que ela é capaz. Aqui temos apenas mais uma confirmação, em composições tão dinâmicas e bem arranjadas que nos faz pensar em um Yes reencarnado em seu auge dos meados dos anos setenta, mas agora submetido ao rigor do inverno norueguês! As partes mais aceleradas e os vocais rasgados não espantarão os ouvidos mais delicados, assim como as partes mais lentas e introspectivas não aborrecerão os extremistas. Tudo é tão harmonioso e cativante, até mesmo os teclados e as linhas de violino e cello e imagino que apenas aqueles que são declaradamente contra a música em geral poderão reclamar.
Vale mencionar também a bela arte da capa, de autoria de Eliran Kantor, que joga com a ambiguidade do título do álbum, “Fall” pode significar tanto “outono”, quanto “queda”, mas queda aqui no sentido geológico e não espacial. Além disso, o layout e o design é assinado pelo onipresente Marcelo Vasco.
Falta ainda mencionar as últimas duas faixas. “The Wild Lingers” (O Selvagem perdura) é a faixa mais lenta do álbum. Embora não seja uma balada, é a faixa mais propícia a agradar até mesmo os ouvintes distantes do universo do Metal em geral, mas cuja beleza não pode ser reprovada. Como em todas as demais faixas do álbum, ambos os vocalistas, o também baixista ICS Vortex e o também tecladista Lars A. Nedland, fazem um ótimo trabalho conjunto. Ao longo do álbum, mesclam vocais limpos e vocais rasgados, assim como coros muito bem encaixados. Por fim, “Northward” (Rumo ao Norte) encerra o álbum, sintetizando todos esses elementos, assim como a natureza, por meio da simbiose micorrízica, dá continuidade à vida. Portanto, aqui o fim é um novo começo, sintetizado na reflexão filosófica que conclui o álbum, que traduzo livremente abaixo:
Aqui estamos sob a estelar cúpula de estrelas
Tente assumir o comando, não há nada que você possa fazer
Grande ou pequeno demais para mudar o fato
De que o aqui e agora define a verdade
Então sê humilde!
Pegue as rédeas e deixe ir
A desgraça de cada lenda que já te chamou
Pela simbiose micorrízica, eu e você
De qualquer modo, esquerda é direita hoje
Para cima é para baixo, e é tudo a mesma coisa para mim
Abraçando o indomável, o frio, o puro
Até que a realidade bata à porta
Então eu vejo quem eu sou
Quem você é, neste momento
O único lugar para estar, para viver até ser libertado
Para moldar as montanhas para a posteridade