CATTLE DECAPITATION – Terrasite

CD 2023 – Metal Blade Records / Mutilation Records

Álbum

“Ainda é incerto que já tenhamos alcançado o fim dos tempos. Em contrapartida, é certo que vivemos no tempo do fim, e de maneira definitiva. Ou seja, o mundo em que vivemos é incerto. “No tempo do fim” significa: na época em que podemos evocar seu fim a cada dia. E “de maneira definitiva” significa que o que ainda nos restar de tempo permanecerá sendo o “tempo do fim”, pois esse tempo não pode mais dar lugar a um outro tempo, somente ao fim. Ele não pode dar lugar a um outro tempo porque não é possível que nós não saibamos mais o que sabemos hoje (a saber, dar fim uns aos outros), nem amanhã, nem nunca”. Günther Anders, A ameaça atômica. Reflexões radicais sobre a era nuclear. São Paulo, N1 edições, 2023.

Todo mês de dezembro a mídia especializada em música em geral começa a lançar suas listas de melhores do ano. No que diz respeito ao metal extremo e ao Death Metal em particular, além dos lançamentos de bandas seminais como Cannibal Corpse, Obituary, Autopsy e Incantation, um título muito cotado para estar nessas listas é o décimo álbum de estúdio do Cattle Decapitation, “Terrasite” lançado em maio deste ano. A banda de Deathgrind fincou sua reputação como uma das mais importantes da cena do Death Metal tanto por conta dos impactantes e cada vez melhores lançamentos dos últimos anos, como por conta de sua militância ecológica e vegana, capaz de arrematar em suas hordas toda uma geração de jovens críticos da exploração indiscriminada da natureza pelo homem. Para erguer essa bandeira, a banda não economizou em polêmicas e manifestações extremistas, especialmente em álbuns da primeira fase da banda, mais centrada no Grindcore, como “To Serve Man” (2002) e “Humanure” (2004), cujas capas e letras se tornaram infamemente célebres.

“Terrasite” dá continuidade aos temas recorrentes nos álbuns da banda: os seres humanos, insignificantes, do ponto de vista cósmico, são retratados como inferiores aos animais, como parasitas terrestres, uma praga que seria melhor se não existisse. Esse pessimismo antropológico extremo encontra eco não apenas na chamada “militância verde”, mas nas versões mais extremadas do pessimismo filosófico contemporâneo, o antinatalismo de autores como Théophile de Giraud (autor de um célebre Manifesto antinatalista: a arte de guilhotinar procriadores em 2006), David Benatar, Peter Wessel Zapffe, Julio Cabrera e outros. Para além dessas versões radicais e mais controvérsias – pois o antinatalismo se aproxima perigosamente de visões eugenistas de mundo – temos algo pertinente ao debate sobre a atual realidade social e política nesse momento da história: a autocrítica do “antropoceno”. A era do “antropoceno”, caracterizada justamente pelo momento em que a intervenção humana na Natureza finalmente foi capaz de transformar o meio ambiente. Transformação decisiva e para o pior. Nesse sentido, o “mal” não vem de outro lugar, senão de dentro de nós mesmos, como vocifera Travis Ryan em “The insignificants”: “We have always been the virus / It has always been inside us / The human is an animal / That you should never trust / Slaughter us! / Exterminate us!” Em termos filosóficos, é a passagem da mera misantropia para o mais decidido niilismo – com todas as suas implicações apocalípticas.

Para falar sobre a música propriamente dita, para quem já acompanha essa banda não haverá grande novidade: peso, brutalidade, técnica e melodia, já presentes nos últimos álbuns, comparecem aqui mais uma vez, só que em uma potência talvez até mais elevada, o que garante a esse álbum um lugar especial no catálogo da banda como uma de suas maiores realizações. Portanto, sem seguir uma trilha diversa daquela que esses californianos já vêm trilhando, senão desde a formação em 1996, pelo menos nos últimos 20 anos (a partir de Humanure de 2004). Se em sua primeira fase a banda poderia ser classificada como “Grindcore”, nesta segunda fase sua sonoridade se encaminhou para um “Deathgrind” extremamente técnico em que a brutalidade não é afetada pela melodia. Porém, se alguns torceram o nariz para o excesso de melodias presentes no álbum anterior, “Death Atlas” de 2019, parece que a recepção crítica desta vez foi mais predominantemente positiva.

“Terrasite” apresenta dez faixas bastante densas. Temos a abertura com “Terrasitic Adaptation” que cumpre bem sua função em introduzir à temática do álbum, que pode ser descrito como um álbum conceitual, ainda que não estruturado em torno de uma história linear, mas com uma ideia central. Se do ponto de vista musical as faixas são agora bem mais longas, complexas e atmosféricas do que na fase “Grindcore”, também as letras são mais densas do ponto de vista conceitual, menos “gore” e explícitas, ainda que não menos radicais. A segunda faixa “We eat our Young” talvez seja a mais direta e, de fato, é a mais curta com seus 3 minutos e 55 segundos. A terceira, “Scourge of the Offspring” (“A praga da descendência”) é a faixa central do disco, do ponto de vista conceitual por apresentar a persistência da humanidade na Terra como um parasita do planeta e, do ponto de vista musical, por apresentar todos os elementos técnicos musicais já mencionados, dos quais vale destacar, o extraordinário trabalho instrumental, pelo qual são responsáveis: David McGraw (natural do Chile) na bateria, Olivier Pinard no baixo, também membro do Cryptopsy, além de Josh Elmore (guitarra principal) e Belisario Dimuzio (guitarra rítmica). E não menos, a incrível versatilidade do vocalista Travis Ryan, capaz de variar do Grindcore mais gritado à lá Barney (Napalm Death), vocais estridentes típicos do Black Metal, os guturais típicos do Death Metal até vocais mais palatáveis para os ouvidos sensíveis, não propriamente limpos, mas digamos menos extremos e que soam parecidos com Udo Dirkschneider e Bobby Blitz (Overkill), além de algumas poucas frases mais melódicas (essas sim com vocais limpos). Esse recurso vocal está presente nas linhas finais da quarta faixa, a já mencionada “The insignificants”.

O miolo da bolacha é recheado com faixas que narram lentamente e com requintes de crueldade a degradação física da espécie humana em face de sua agora inadaptação ao meio ambiente circundante. A luz, o sol, a água, tudo passa a ser nocivo e só resta o caminho para a extinção. Trata-se da sequência iniciada pela quinta faixa “The Storm Upstairs“, “A Photic Doom”, “Dead End Residents”, “… and the World Will Go on Without You“ e “Solastalgia”. Essa verdadeira epopeia apocalíptica tem seu fim justamente com a última e mais épica faixa do disco “Just Another Body“, com seus mais de dez minutos. De fato, a atmosfera apocalíptica é um ingrediente fundamental dessa obra, o que nos leva a mencionar seu produtor Dave Otero, que produziu cinco dos dez álbuns lançados pelo Cattle Decapitation até hoje e toca os teclados que abrem a última faixa. Demais teclados e sintetizadores são feitos por Dis Pater, músico responsável pelo projeto “one-man band” chamado “Midnight Odissey”. Vale acrescentar também que o álbum é dedicado à memória do ex-guitarrista Gabe Serbian, membro fundador e que fez parte do grupo até o ano 2000, falecido ano passado enquanto “Terrasite” era gravado. Por fim, a arte da capa é assinada por Wes Benscoter, autor de capas já icônicas de bandas como Nile, Incantation, Slayer, e tantas outras. A semelhança com a capa de “Survival of the Sickest” do Bloodbath não é mera coincidência.

Apesar de beirar a perfeição, “Terrasite” não estará unanimemente nas listas de melhor do ano justamente por conta do excesso de elementos, e parecerá não suficientemente extremo ou demasiadamente moderno para ouvidos mais saudosistas, já que é capaz de agradar também o ouvinte de Metal alternativo ou mesmo New Metal. Ou talvez complexo demais para esse mesmo público. Seja como for, não se pode negar a sua relevância para a cena contemporânea da música extrema.