As flores do mal – Charles Baudelaire, 1857

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Charles Baudelaire, ca. 1863. Artist Etienne Carjat. (Photo by Heritage Images/Getty Images)

Muitos livros tratam do mal. Desde às teogonias gregas até os mais antigos livros de religiões e práticas místicas, o mal é narrado, representado, debatido, combatido ou celebrado. Fora da esfera estritamente religiosa ou da discussão acadêmica e filosófica, há alguns livros que se tornaram clássicos da literatura universal como A Divina Comédia de Dante Alighieri, o Paraíso Perdido de John Milton e O Casamento do Céu e do Inferno de William Blake. Todos esses livros, porém, tratam do mal na perspectiva judaico-cristã. Já As flores do mal de Charles Baudelaire, cuja primeira edição foi publicada em 1857, tratam de um mal difuso e indefinível, não passível de ser reduzido a um conceito claro e distinto, e sem estar preso às imagens e categorias cristãs, ainda que recorram a elas enquanto figuras poéticas. O livro apesar de condenado e mal recebido em sua época logo veio a se tornar um marco da literatura contemporânea.

As malditas flores baudelairianas constituem uma coletânea de mais de uma centena de poemas divididos em seis seções: “Spleen e Ideal”, “Quadros Parisienses”, “Flores do Mal”, “Revolta”, “O vinho” e “A morte”. Logo que foi publicada em Paris em 1857 a obra foi denunciada por representar um “delito à moralidade pública”. Os exemplares são apreendidos, os editores (Poulet-Malassis e De Broise) e o autor são multados e seis poemas são banidos, isto é, proibidos de serem publicados, são eles: “Lesbos”, “Mulheres malditas”, “O Letes”, “À que está sempre alegre”, “As joias” e “As metamorfoses do Vampiro”. Depois da morte do poeta em 1867, as edições seguintes das Flores do Mal incorporaram esses poemas proibidos, além de uma série de outros totalizando 162 poemas.

Apenas um século depois de publicadas, As Flores do Mal receberam sua primeira tradução em língua portuguesa em 1958, no Brasil, por Jamil Almansour Haddad, à qual se seguiram as traduções de Ignacio de Souza Moitta (1971) e de Ivan Junqueira (1985), esta última sendo a versão mais conhecida, publicada pela Editora Nova Fronteira, sempre em versão bilíngue. É dessa tradução que provém alguns versos citados abaixo. Além dessas, são conhecidas algumas outras traduções parciais como, por exemplo, “As flores das flores do Mal” de Guilherme de Almeida.

Os poemas não tratam do mal e de suas expressões de forma específica, mas dão voz a um mal-estar que depois ficou caracterizado como “mal do século”. O tédio, a ausência de significado, a insuficiência das crenças que estruturavam a visão de mundo dos séculos anteriores, o fascínio com o efêmero, o erotismo, a moda e a vida urbana da Paris do século dezenove. Para sua poética, Baudelaire incorpora referências alquímicas e a influência gótica presente no romantismo francês, o que se expressa no vampirismo e em sua demonologia. Esse aspecto satânico já aparece no poema zero, chamado simplesmente “Ao leitor” e que traz uma estrofe particularmente sugestiva para quem aprecia o Metal Sombrio:

Na almofada do mal é Satã Trimegisto

Quem docemente nosso espírito consola,

E o metal puro da vontade então se evola

Por obra deste sábio que age sem ser visto.

O confronto com o absurdo se apresenta especialmente na seção “Revolta”, composta por três poemas, “A negação de São Pedro”, “Abel e Caim” e “As litanias de Satã”.

As litanias satânicas de Baudelaire receberam uma esplêndida interpretação do Rotting Christ no álbum Rituals de 2016, com os vocais de Vorphalack do Samael recitando o texto original francês (veja no lyric vídeo abaixo).

As obras artísticas influenciadas pelas Flores do Mal são amplas e variadas, indo das artes plásticas ao cinema, da literatura ao teatro e também chegando à música. Especialmente o Post Punk e o Rock Gótico do final dos anos setenta e início dos oitenta faz referências explícitas à poética de Baudelaire. Bauhaus, The Cure, Siouxsie and the Banshees e especialmente o Dead Can Dance, duo australiano que iniciou suas atividades como uma banda “Dark” e cujo segundo álbum é intitulado justamente “Spleen and Ideal”. No controverso, mas influente álbum Into the Pandemonium de 1987, o Celtic Frost ofereceu duas versões para o poema “Tristesses de la lune”: na voz feminina lasciva de Manü Moan e em inglês com “Sorrows of the moon”, em que a voz lânguida de Thomas Gabriel Warrior transporta a áurea gótica do Post Punk para o Metal e o resto é história. Quando fazia sua transição do Death Metal para o Metal sinfônico, o Therion (banda sueca cujo nome é explicitamente inspirado na banda suíça) fez um cover de “Sorrows of the moon” e anos depois, em 2012, lançou um álbum de covers de canções populares francesas com o óbvio título Les Fleurs du Mal

Enfim, embora não seja uma obra satanista no sentido estrito da palavra, As flores do Mal constituem uma obra demoníaca, sedutora e transgressora, que abala a rigidez da moralidade cristã e inspira uma arte apropriada ao mal estar do mundo moderno.