HECATE – a escolha do nome de nossa horda se deu essencialmente pelo significado místico…

"O Metal Negro deve transmitir obscuridade, uma aura subversiva espiritual"

Entrevista

A Hecate é uma das bandas mais respeitadas da cena underground brasileira, formada em 1995, eu, poucas vezes, pude ler declarações em zines ou mídia especializada da banda, isso posto, eu tenho a impressão de que os mistérios por traz da horda tem algo que ver com essas raras aparições. Hecate tem um álbum completo lançado, o “Odes ao Oculto” que saiu em cópias limitadas em 2003 e, recentemente, foi divulgada a reedição deste álbum em versão LP e CD, após o lançamento do álbum em 2003 a banda participou de diversos splits e obras independentes em cd e k7. A fim de trazer à tona uma série destes mistérios que recobre uma banda underground do Metal Negro foi que nos motivou convidá-los para esta entrevista, assim como levantar temas que agucem a percepção ideológica por traz de uma das grandes mentoras da magistral entidade Hecate.

Saudações minha nobre aliada, é com muita satisfação que vos trago essas indagações a fim de que possamos nos aprofundar um pouco mais nos mistérios desta consagrada horda de nosso cenário nordestino. Para iniciar esse ensejo, nos fale como se deu a escolha deste nome?  Houve algum propósito maior que o poder sonoro dele, por exemplo?

Pagan Priestess: Salve nobre Naberius! É uma grande Satisfação e honra participar deste diálogo em pról acima de tudo do conhecimento e com nossa Horda no foco destas questões, espero conseguir elucidar as mesmas! Assim iniciando, digo-vos que a escolha do nome de nossa horda se deu essencialmente pelo significado místico do mesmo. Hecate, a deidade, sempre me fascinou por todo o mistério e complexidade existente em torno de si.  Meu primeiro contato com ela se deu quando fiz Gnose por volta de 1987 e na interpretação desta corrente, Hecate era como uma mãe que nos acompanhava aos submundos infernais até atingirmos a libertação final, ou seja, a desintegração egóica; pesquisando mais sobre ela, descobrimos mais títulos e funções como Rainha das bruxas, Rainha dos mortos e fantasmas, Senhora das Encruzilhadas, portadora de tochas e chaves etc. Tínhamos nessa época poucas informações sobre ela, o que só aumentava o mistério e fascínio exercido em nós, mas suas características bruxescas, negras, como guia de uma jornada aos submundos, eram notórias. Assim, nos pareceu um nome que reunia todas as características para nos inspirarmos e nos conduzirmos nesta jornada que estávamos começando dentro do Metal Negro.

Sabemos que divindades pagãs são repletas de símbolos de cunho feminino, porém essa nossa sociedade monoteísta, eurocêntrica e colonialista judaico-cristã em que estamos imersos, nos levou a ter prioridades voltadas aos arquétipos masculinos. Diante de tal problematização cultural, como vocês encaram essas distorções, sabendo que o cenário reproduz esses mesmos arquétipos?

Pagan Priestess: Sem dúvida sua afirmação é fartamente comprovada através da história da maioria das sociedades.  A transição paganismo /cristianismo traz este aspecto de forma bastante clara.  O Cristianismo demonizou todas as divindades pagãs transformando-as em demônios e algumas das divindades femininas foram transformadas em demônios masculinos. A própria Lilith, segundo alguns autores defendem, foi excluída do livro Gênesis, tendo sua existência questionada, afinal sua presença representava uma insubmissão feminina instintiva e brutal; além disso há a teoria que a chamada “Virgem mãe de Deus” foi criada para preencher a lacuna das Deusas Pagãs , pois a extirpação das Deusas pagãs foi algo muito abrupto e radical, havendo assim a necessidade de uma representação feminina espiritual para foco de devoção. Infelizmente o cenário do Metal Negro também reproduz isso de forma quase generalizada onde há predominância esmagadora de entidades e forças espirituais masculinas, mas houve alguns avanços e melhoras. Hordas como nós que exaltamos Hecate, como Cult of Fire que exalta Kali, entre outras … Eu penso que é muito pertinente esse debate e questionamento em cima dessa predominância, afinal nosso meio se coloca como rebelde e questionador de padrões, convenções, mas ao nos depararmos com comparações com os padrões cristãos podemos observar semelhanças incômodas que colocam em xeque a propalada rebeldia ideológica do meio.

Medusa: O Aeon o qual estamos inseridos ainda guarda resquícios do paternalismo, porém quando vivenciamos nossas práticas bruxescas, procuramos resgatar através da nossa ancestralidade pagã a divindade que nos representa e que agrega toda a magnitude do sagrado-profano feminino, pois assim nos vemos melhor representados independente do que o cenário possa ditar, somos antinomianos por essência.

A resistência aos padrões se dá justamente através da horda que carrega o nome de uma Deidade Feminina de grande magnitude, sendo ela A Deusa Hecate. Isso nos coloca onde realmente escolhemos estar.  As distorções existentes não nos incomodam, pois nosso culto além de legítimo se dá pelo chamado que tivemos. Hoje, homens e mulheres que compõem a egrégora da Horda reverenciam e estão conscientes que a Deusa Hecate está acima de qualquer clichê que a cena possa “impor”. Nossa espiritualidade expressa nossa liberdade.

Ainda sobre o contexto feminino, desde que conheci a banda, há mais de 20 anos atrás, ela já tinha

Pagan Priestess

em sua formação figuras femininas, além de você, claro! E passou um bom tempo sem essas outras figuras. Recentemente houve adição de uma nova integrante, isso posto, como você percebe a presença das figuras femininas dentro da ceara do Metal Negro, como são estes obstáculos transpassados?

Pagan Priestess: Sim, Naberius! A Hecate sempre contou comigo e em formação anterior contou com Ada –Mantheus nos teclados que gravou os álbuns Odes a o Oculto e Triunfal Aliança. Atualmente a Hecate conta com os teclados poderosos de Medusa que só vieram a somar em nossa sonoridade e espiritualidade. Ela, como Hekatina, fortaleceu de forma visível a energia espiritual emanada por nós, através da arte e espiritualidade que expressamos. Sobre a presença feminina no Metal Negro do Ceará, a mesma tem melhorado, apesar que se compararmos com a atividade masculina, ainda existe grande disparidade. Temos hoje O Umbral dos Mártires que contava com duas mulheres na formação (atualmente somente uma), o que é muito admirável, pois denota avanços nesse sentido. Os obstáculos, na minha visão, podem se mostrar mais visíveis ou mais sutis. Normalmente percebo maior cobrança técnica em torno de mulheres, ainda suscitam também maior curiosidade em torno de questões ideológicas e/ ou mesmo a cerca de expressão visual. Decerto essas nuances se devem também ainda a imensa diferença quantitativa que existe em termos de atuação em bandas entre homens e mulheres e certamente, a evidente presença de preconceitos como machismo em nosso meio, seja manifestado por homens e/ou mulheres. Mas que isto seja confrontado e quebrado pela presença feminina, a qual espero, esteja sempre em ascensão entre nós.

Medusa

Medusa: Os obstáculos infelizmente ainda existem, pois o que existe no Black Metal pregado por uma boa parte das hordas e público que consome essa vertente é um falso conceito de liberdade, porém, isso nunca foi e nem será obstáculo para a força feminina.  Travamos batalhas diárias em vários âmbitos que vão desde o preconceito racial, de gênero e de orientação sexual. Enquanto hecatinos, vemos muitas máscaras no chão e isso nos fortalece e nos permite sermos cada vez mais seletivos. Não nos intimidamos. Hecate Rege!

Hécate há muito tempo, principalmente no seu primeiro álbum, mostrou uma visão linguística estrita voltada à língua portuguesa praticada em nosso país, como se deu a escolha por enveredar por esses caminhos poéticos?

Pagan Priestess: O Português nos dá uma experiência totalmente diferenciada do inglês na vociferação das letras. Ele imprime mais sentimento as palavras tanto para quem está cantando e para quem está ouvindo.   Isso torna a mensagem mais poderosa, mais palpável em termos de sensações para todos. Propicia mais força na troca de energia entre a horda e o público em apresentações ao vivo. Assim, para nós foi uma escolha mais que certa e tudo começou em nossa trajetória com a música “A celebração” da demo Sob o Signo da Magia.

Falando em álbum, “Odes ao Oculto” já vai completar vinte anos neste ano de 2023, e desde então foi o único álbum completo lançado pela banda desde então. Qual o motivo da banda possuir tantos espaços entre um lançamento e outro e o que traduz a dificuldade de lançar álbuns e, mais especificamente, a Hecate lançar o segundo álbum?

Pagan Priestess: Essa dificuldade tem sido motivada principalmente por fatores como mudança de formação e shows (mesmo escassos). Isso contribuiu para uma série de adiamentos que vem se arrastando há anos. Possuímos várias faixas novas que poderiam facilmente compor um full length, mas precisamos urgentemente nos organizar nesse sentido. Eu espero que a formação se estabilize ( tivemos uma nova mudança recentemente) e possamos realmente concretizar esse trabalho ,pois o material inédito composto é muito poderoso!

Ainda sobre o “Odes ao Oculto”, como disse na questão anterior, completa seus vinte anos e ele foi lançado em apenas uma tiragem e depois em outras versões como em cassete por exemplo! Existe a possibilidade desse material ser relançado em cd ou Lp, ou quem tem o seu, tem e fim de papo?

Pagan Priestess: Nós já tivemos inúmeras propostas relacionadas ao relançamento do Odes ao Oculto, mas sempre recusávamos porque, apesar de sua enorme significância em nossa trajetória, nunca fomos uma horda que se deteve a relançar seus materiais. Sempre focamos no aqui e agora, nas composições inéditas, nos planos relacionados a futuros materiais. Mas este ano, com seus 20 anos de história, achamos que chegou a hora de relançar o Odes ao Oculto, pois não deixa de ser um reconhecimento da sua importância em nossa história e do   Metal Negro nacional (algo que nem imaginávamos que ia acontecer). Então o Odes ao Oculto terá um relançamento muito digno em cd e vinil pela Black Hearts Records e Thelema Moon Records. Confio plenamente que estes dois selos, tendo à frente o Paulo (Black Hearts) e o Cleiton (Thelema), oferecerão um material à altura da importância histórica deste trabalho.

Por ser uma horda estreitamente relacionada com as forças pagãs, qual a visão de vocês sobre as questões ocultistas que são abordadas por muitas bandas que não possuem nenhuma iniciação e acabam esvaziando ou tornando rasa a dialéticas sobre temas tão importantes e tão sérios?

Pagan Priestess: Grande parte de bandas de nosso cenário não tem muito aprofundamento teórico e muito menos prático dentro da espiritualidade ocultista. Sempre existiu isso e creio que sempre existirá. Existem muitas bandas que se detém mais na questão ideológica, no anticristianismo, em um satanismo mais voltado a oposição de dogmas e exaltação da liberdade, que certamente, também fazem parte desse, digamos, corpo dialético do Metal Negro. Isso nunca me incomodou. Eu vejo a espiritualidade obscura como um caminho nada fácil, permeado de dificuldades internas que visam transcender essa materialidade, nossos conformismos e repetições de padrões internos em que vivemos. Não é algo para todos. Então é normal existirem poucas hordas mais aprofundadas nessa questão, elas enriquecem essa visão não só pela expressão diferenciada desses temas em nosso meio, mas pela postura também diferenciada. Assim essa diversidade de hordas se reflete também na forma de expressão das mesmas em nosso meio, o que incentiva as pessoas com visão mais crítica a perceberem essas diferenças e procurarem suas afinidades em relação a bandas não só pelo aspecto técnico, mas também ideológico, filosófico e espiritual.

Sobre os novos trabalhos da banda, como eles se apresentam na atualidade? Quais são os projetos da Hecate para estes próximos lançamentos depois do fantástico Split com Iron woods?

Pagan Priestess: Nós estamos trabalhando atualmente na gravação do EP “Os caminhos da Serpente” que contará com 4 faixas inéditas e possivelmente 3 intros. Esse material, apesar de anunciado há mais de um ano, sofreu com atraso novamente devido a shows e mudanças de formação. Esta última foi bastante significativa, pois a mudança ocorreu nos postos de baterista e o vocalista. Então esse momento atual tem sido de bastante trabalho por conta da inserção novo baterista e do baixista assumir os vocais da horda. Mas eu creio que o novo material não decepcionará trazendo uma atmosfera genuinamente hekatina e serpentinea aliadas aos temas propostos nesta obra.

Qual a visão de vocês sobre os tempos atuais, sobre a ruína de espaços para eventos de qualidade, o rareamento da aquisição de material físico, ainda que exista, porém sua diminuição é assustadora em se comparado com outros tempos. Hecate acompanha essas transformações? De que maneira vocês analisam tais transformações?

Pagan Priestess: Sim, acompanhamos essas questões que são bastante notórias infelizmente. Eu vivi os anos 80, anos 90 onde todos sempre buscavam pelo material físico, item praticamente obrigatório entre os apreciadores do Metal em geral. E hoje nos deparamos com essa escassez de interesse onde o virtual vem tomando cada vez mais o lugar do físico. Eu não tenho nada contra as plataformas de som, acho até um meio eficaz para conhecermos novas bandas, mas não devem substituir o prazer e satisfação de termos o material físico que nos dá uma experiência mais completa em relação a obra que admiramos.  Além do apoio em si a banda com esse gesto. Então penso que não deveriam substituir a aquisição do material físico. Em relação a espaços, nunca foi fácil esse lado de termos casas que ofereçam uma estrutura mínima adequada. Aqui em Fortaleza, por exemplo, os locais vêm e vão com o tempo. Já houve momentos em que não tínhamos nenhum espaço e outros onde surgiram casas que fizeram sua história em nossa cena. Além de toda essa dificuldade em relação aos espaços, está cada vez mais difícil apresentações com o uso de fogo, tochas, velas, devido ao trágico acidente ocorrido na boate kiss no Sul do País há anos. Então só piora… Mas eu penso que quando nos dedicamos a esta arte, nossa maior satisfação sempre será criar, tocar nossas composições, vermos as mesmas concretizadas em materiais… Não quero ser aquela pessoa que vive do passado, lamentando as mudanças que normalmente são inevitáveis, porque não dependem de nós. Esperamos manter sempre a velha chama ante essas transformações; não sabemos o que virá no futuro, mas o Metal em geral vai se manter vivo, devido suas raízes que sempre valorizaram tradições. E mesmo com o avanço tecnológico, nós sabemos que é possível conciliar tradição e modernidade. Quanto aos espaços, é a Luta de sempre! De quem organiza, de quem toca… Nunca foi fácil.

Draconiano

O Metal Negro, durante muitos anos, talvez até hoje, foi associado com a falta de técnica, a falta de qualidade, músicas “simples” sem muito rebuscamento, diria até minimalista, por outro lado, sempre tivemos muitos exemplos de bandas que primavam por suas composições, fazendo com que estas fossem opulentas e erigidas com maestria. Eu vejo a Hecate dentro do segundo exemplo! Isto posto, vocês acreditam que a técnica ou a falta dela, podem intervir na vibração energética que o Metal Negro emana em sua manifestação artística?

Pagan Priestess: Eu não acho que seja a técnica a essência dessa vibração energética que você menciona. E sim o sentimento provocado pela composição. Esta pode ser simples ou mais complexa, mas se ela souber transmitir esse sentimento ou vibração energética será algo forte e poderoso! Nossas composições tiveram uma evolução técnica e natural de acordo com nossa proposta e construção de nossa identidade musical. Particularmente eu procuro tocar o que sei, mas nunca pensei no sentido de evoluir tecnicamente para mostrar essa evolução na música. Porque o que dita a composição é o sentimento, a inspiração. Daí podemos compor algo mais simples ou algo mais rebuscado. Mas as hordas criam suas próprias identidades e realmente algumas vão soar mais técnicas e outras menos. Mas algo muito técnico pode ser incrivelmente chato e algo mais direto pode ser muito fudido. E vice-versa. Depende da composição e de como ela vai atingir as pessoas.

Ainda de modo crítico, a estética do Metal Negro, sempre esteve envolta sob o manto da via sinistra, e muitas bandas vem rompendo com essa estética, naturalizando os símbolos como o corpse paint, os sortilégios, os mantos negros passando a mostrarem-se com menos peso em suas aparições mundanas. Qual a opinião da banda sobre essa desconstrução, apesar de crer que a liberdade é nossa principal guia?

Ignis Elementorvm

Pagan Priestess: O Metal Negro no meu pensamento e sentimento, deve transmitir obscuridade, uma aura subversiva espiritual. Vejo como um estilo diferenciado dentro do Metal exatamente pela questão espiritual. Então essa obscuridade pode ser transmitida pelos corpses paints, pelos mantos negros ou mesmo pelos visuais mais tradicionais ligados ao couro, aos braceletes com rebites. A estética deve servir de complemento a música. O que acharia estranho seria uma horda de Metal Negro se apresentar como qualquer banda de Metal e não conseguir transmitir essa obscuridade no palco. Então se essa desconstrução visa seguir por caminhos estéticos que transmitam escuridão, transgressão, espiritualidade oculta, não creio que se perde algo. Pelo contrário. Talvez seja uma nova forma de expressão que dê privilégio aos aspectos mais espirituais da música…

Agradeço imensamente por ter nos cedido essa grandiosa entrevista, é sempre uma grande honra tê-los como grandes aliados por todos esses anos, o espaço é todo seu para proclamar o que desejar.

Pagan Priestess: Agradeço o espaço cedido a nossa horda. Agradeço por toda a paciência na espera das respostas, a honra também é nossa por toda a consideração e respeito! Sim, nossa aliança já vem por muitos anos!  E aqui finalizo nossas palavras reafirmando que hoje Hecate mais que nunca é uma expressão metálica espiritual voltada a nossa Deusa maior, nossa Mãe Sombria, Hecate! Os caminhos serpentíneos não são lineares ou previsíveis!  A serpente negra engole e regurgita o que não serve! E continuamos neste caminho, em honra ao Metal Negro e a Deusa de três faces que aponta suas tochas para nós! Ave Hecate!!!