HORROR TALES – Conto VII: O Pantaneiro

Horror Tales

Problema de pressão alta, minha filha?

O pantaneiro socava erva de bugre e sete sangrias no pilão com um vigor incompatível com a sua idade.

– Olha a garrafada!

Preparava suas misturas com esmero… Ipê roxo, graviola e carqueja controlam o diabetes. Para coceiras e micoses, sabão da raspa do joá. Este é o conhecedor dos mistérios da natureza, guardados há milênios nas profundezas do Pantanal e com eles preparava suas garrafadas.

Lona aberta no chão repleta das mais diversas folhas e raízes. Sua surucucu enrola-se de forma preguiçosa por seus ombros e pescoço, como que incomodada pelo sol escaldante. O velho pantaneiro não parecia se importar com o poder da peçonha da cobra tampouco com a proximidade das presas em sua orelha. Uma modesta aglomeração assistia o velho a quebrar suas sementes e misturar as ervas na garrafa.

Sob o sol de Duque de Caxias, acompanhei por alguns instantes o velho a preparar suas garrafadas. E cercado pela pequena multidão, aspirando o odor inebriante da alfazema, fixei meu olhar em uma das garrafas já preparadas um tanto embriagado por uma incômoda tontura. Era possível observar fragmentos de folhas secas pulverizadas dançando dentro do estranho líquido amarronzado da mistura. Um enorme calafrio subiu-me pelas vértebras e minha respiração estava curta. Taquicardia. O velho batia nó-de-cachorro no pilão. Meu rosto estava suado e senti-me febril. Pânico. Minha visão tornou-se turva e um cansaço imenso tomou todo o meu corpo. Ao virar o rosto freneticamente para os lados notei que as imagens não acompanham a rapidez de meu pescoço como em uma forte labirintite. O pantaneiro ergueu um punhado de frutos de andiroba e disse às pessoas algo sobre combate à diarreia. Inesperadamente minha vista tomou uma coloração azul escura e creio ter perdido a consciência.

Despertei a luz avermelhada do fim de tarde. Onde estávamos… Não sei dizer. Não havia mais ninguém além do pantaneiro e eu. Na verdade não sei como acordei naquele lugar tão quente e vazio, mas era real. Eu senti. Eu pisei na terra vermelha. Eu toquei os mariôs jogados no chão e provei do ar puro daquele local. Eu sei… Sei que foi real…

O velho estava sentado a remexer suas ervas acomodado na sombra de um enorme baobá e fui capaz de observar com mais clareza a gangrena em sua perna. Caiçaras são vistas no meio do lago contornado pela copa dos dendezeiros. A exuberância da natureza era notável. Aquele homem idoso levantou-se, virou-se de costas e seguiu mancando pela mata. Uma breve caminhada e o pantaneiro chegará aos umbrais de uma calunga pequena. Abriu o enorme gradeado sem hesitar, segurando uma garrafa vazia.

E caminhando por entre aqueles sepulcros, colheu a terra de uma cova velha cuja lápide já não mais podia ser lida. Lixou uma lasca de mármore, desprendida de alguma daquelas sepulturas e cada farelo que coletava compunha a sua garrafada.

Pôs seu pênis idoso no gargalo do recipiente, adicionando à mistura sua urina escura e fétida. A composição tomou a cor do dendê. O pantaneiro ajoelhou-se com as mãos no abdome e expeliu a sua bile viscosa. A cena assemelhava-se a uma regurgitação e ainda pude notá-lo a projetar parte do excremento preso em seus dentes cariados. O velho tomou o vômito nas mãos impregnado de terra e areia e o adicionou sem se preocupar que escorresse pelo pescoço da garrafa, ainda cuspindo o seu escarro esverdeado. De súbito aquele homem fitou-me olho a olho, apesar da distância que nos separava. Velho e manco, ergueu a garrafa em minha direção e com um sorriso mórbido foi se aproximando com a velocidade que sua perna necrosada permitia. E à medida que o velho aproximava-se mais e mais, minha visão transmutou-se em algo ondulatório, como uma forte vertigem.

O pantaneiro avançava em minha direção e pude sentir o odor pútrido de seu suor e seu hálito, com meu corpo petrificado por uma força invisível. Aquele homem apoiou-se agarrando minha camisa e num gesto brusco pôs a garrafa em meus lábios… E em um colapso mental, mais uma vez a grande escuridão tomou a vista.

E num passe de mágica lá estava eu de volta ao Gramacho, observando o pantaneiro com sua cobra enroscada nos ombros. Ainda desnorteado pela experiência que vivi, uma forte dor de cabeça consumiu-se e a sensação se agravou abruptamente quando de relance observei o sol amarelo e incandescente de Duque de Caxias. Dei as costas àquele idoso tentando recobrar o equilíbrio, mas ainda fui capaz de ouvi-lo sussurrar:

– Prove a garrafada da morte, meu filho…

Por: Infragalaxia