Van Braum era o capitão daquele navio, velho, empoeirado, sórdido e por vezes, soturno o suficiente para gerar histórias de arrepiar entre marujos daquele pequeno, mas próspero porto, no oceano gelado.
Muitos não queriam trabalhar com ele pois diziam que nunca voltara a deriva enquanto suas metas não fossem cumpridas.
Impiedoso, Van Braum ficou conhecido no povoado como o homem que cumpre o que faz. Até Guilherme III, o rei, já lhe enviara saudações pela sua bravura em velejar o mar gelado, sempre com objetivos alcançados com sucesso.
Talvez isso lhe dera a fama de filho do demônio, ou o mestre do gelo. Ele não se importava, gostava de beber até amanhecer nas vielas sujas de Amsterdam com seu melhor amigo e seu biógrafo Charles Gaulle, um francês culto que trocou a vida em Paris para seguir sua lenda pessoal, conhecer e desbravar terras remotas junto com o destemido Van Braum.
Acertara em cheio quando resolveu ir para Amsterdam e tentar radicalmente mudar de ofício, de professor para biógrafo e desenhista, desenhando tudo que via, sendo um animal, uma flor desconhecida e fazendo assim, uma espécie de catálogo.
Eles eram inseparáveis, tinham um grande estoque de rum, coletado em um forte nas ilhas ensolaradas de águas transparentes que um dia, fora de rota, alcançaram um pequeno pedaço de terra onde o calor era insuportável. Única vez que saíram de suas rotas nos mares gelados, ficaram meses perdidos porém, Van Braum, insistentemente com seus velhos mapas e sua velha bússola conseguiu avistar geleiras e icebergs, foi quando retomou a sua rota que já era conhecida, que por vez, ele mesmo teria criado. Mas a história desses dois amigos, destemidos, não acabara bem. Como lhes digo aqui neste manuscrito, vou lhes contar a surpreendente história de meu avô, Van Braum e seu fiel amigo Charles Gaulle, junto de seus marujos bêbados e maltrapilhos que, de bravuras e conquistas, passou para escuridão e desespero. De marujos e capitães para mutantes gosmentos e enlameados de fome, de sede, não por alimentos, mas sim por almas. Alimentando ódio e sofrimento por onde passaram (Ou ainda passam).
Os relatos póstumos de Robben Trier, criptografados por uma velha feiticeira, contam a trajetória do navio de meu avô. Costumavam chamar seu navio de Vliegende Hollander, mas isso era apenas entre a tripulação e não era oficialmente esse nome. Cabe a mim, adotar esse nome no decorrer deste manuscrito.
Robben Trier, um marujo maltrapilho, com longas barbas e poucos dentes, coberto de gelo em seus longos pêlos faciais fora talvez o responsável pelo fato que se desencadeou em sua última viagem com Van Braum. Sabemos que é a última pois nunca mais se viu o tal velho Von Braum como conhecemos.
Os rumores que seu navio se esconde no estreito de Categate em um único ponto cego das cartas marítimas.
Criptografia manuscrita de Robben.
Era uma noite alegre no navio. Estávamos felizes, bêbados de hidromel e rum. A neve caindo não nos incomodava, já que nossos peitos estavam aquecidos pelo álcool e nossas bocas trabalhando arduamente em tragar cachimbos com ervas alucinógenas no qual, nós mesmos cultivamos em terra, clandestinamente. Nós marujos, não éramos com Van Brum e Charles. Não éramos destemidos e valentes, apenas éramos bêbados, aceitávamos trabalhar naquela espelunca de navio por causa de algumas moedas, mas principalmente para que, consigamos todas as noites ficar etilicamente alterados. Estávamos navegando há semanas, e apenas a bebida e o fumo, nublam nossas mentes, esquecendo da tão sonhada volta para o porto.
Van Braum não queria voltar. Depois da última vez em terra firme, conhecera uma jovem mística que num acesso de raiva pelo mal comportamento dele em sua casa, jogou palavras de maldição, em cima de Van Braum. Mas ele, com sua egocentricidade, gerada pelo seu sucesso e reconhecimento, deu de ombros e fora embora as gargalhadas.
Mas ele mudou depois disso. Sempre com olhos abertos, estalados, e um semblante desconfiado, não conseguia sequer dormir direito, e sequer saber o que estava realmente atrás.
– Do que estamos atrás capitão? – Perguntou um dos marujos.
– De um tesouro. – respondeu Van Braum.
– Que tipo de tesouro?
– Ainda não sei. Ainda estou à procura. Complementou olhando para o horizonte, com muitas incertezas em seu olhar.
Nem de sua amada ele se lembrava. Parecia ter perdido os sentimentos primários, apenas olhos estalados com um ar desconfiado.
Charles Gaulle nem saia mais de seus aposentos, se embriagava e ficava falando sozinho.
Meses se passaram e percebia algo estranho acontecendo. Estávamos mudando fisicamente. O sol não ardia mais, não tínhamos mais a sede pelo hidromel ou pelo rum. Nada saciava a angústia que sentíamos. Comida parecia serragem em nossas bocas.
Ainda não sabia dessa maldição. Ainda não tinha me dado conta que nunca mais íamos voltar para as nossas amantes, para nossa casa, para nossas terras e cultivarmos nossos plantios.
Mas estávamos estranhos. Lembro-me que minha pele estava grossa, mesmo esfregando muito para tirar aquilo, sempre voltava em algumas horas. Certa vez esfreguei tanto que arranquei toda a pele do meu ante braço.
Lembro-me que morri numa manhã, quando finalmente o sol saiu. Na verdade, depois me dei conta, quando já estava morto que, sempre houvera sol, apenas nós não conseguíamos enxergá-lo.
Descobri a maldição depois que morri, pouco antes de entrar no limbo. Descobri que aquela jovem mística soltou palavras de forte cunho espiritual em cima de Van Braum, as coisas começaram a acontecer. Sabe-se lá qual foi a maldição, apenas sei nesse exato momento que eles se encontram no estreito de Categate. Navios passam por lá e descobrem algo terrível.
Rumores dizem que eles têm que capturar mil almas para poder se libertar da maldição. Outros dizem que eles, como uma espécie de mutação, viraram homens peixes. E podem se locomover nas águas com rapidez.
Talvez alguém possa ter confundido com sereias. Mas eles não podem atracar, isso é certo.
Esse foi o que Robben disse na psicografia. Apenas transcrevi o que aquela velha me disse.
Meu avô, Van Braum ainda é o capital daquele navio e seu fiel amigo, Charles Gaulle ainda está lá, como um cão fiel, talvez raivoso.
A ira desse navio ainda assola alguns da comunidade que, sempre que vão navegar por aqueles lados, fazem o possível e o impossível para não atravessar o estreito de Categate.
(Publicado originalmente na Antologia, A Maldição do Holandês Voador, pela Editora DarkBokks. Organizador da antologia: Rodrigo Leonardi. 2022).
Escritor, músico e entusiasta do cinema.
Como escritor, tenho 5 livros publicados, participação em diversas antologias.
Como músico, fui baixista e vocalista da banda Abuso Verbal e atualmente vocalista da banda de Metal Punk “Roto”.
No cinema, já escrevi críticas para o site Cineset, diversos fanzines como, Sindicato dos Assassinos e também divulgo análises no feed do meu instagram.