Miasthenia – Temática e linguagem são partes fundamentais da identidade

a intenção é expressar nossos sentimentos pagãos, anticoloniais e anticristãos

Entrevista

Faz algum tempo que venho pensando numa entrevista com Miasthenia que saísse um pouco do óbvio, apesar deste óbvio ser inevitável, as questões tinham intenção de caminhar sobre a ceara do conhecimento. As questões dos povos ancestrais do continente sul-americano são pautas muito importantes para serem abordadas  e a Miasthenia faz isso desde sua fundação de forma magistral. Foi com esse intuito que tivemos a honra de ter esse bate papo com Suzane Hécate, a fim de trazer a tona estes trabalhos, pensamentos e, claro, sobre as atividades da banda.

Saudações meus nobres, é uma grande honra tê-los por aqui para essa conversa sobre os pensamentos da banda, os projetos e os novos trabalhos. Para iniciar gostaria de saber qual o balanço que vocês fazem da longa carreira da banda, prestes a celebrarem três décadas nas trincheiras do underground brasileiro?

Suzane (foto de divulgação)

Susane Hécate – o Miasthenia já tem uma longa trajetória no underground da música extrema. Passamos por várias fases e superamos muitos desafios para se manter ativos produzindo álbuns, videoclipes e shows. Todos os ex-membros da banda deixaram o seu legado e isso sempre foi respeitado. Além disso, todas as pequenas conquistas, ao longo destes anos, foram celebradas e aprendemos muito com cada uma delas, sempre tentando superar as dificuldades.  Com o passar do tempo, essa larga vivência no underground nos deu muita experiência de vida e a partir disso creio que construímos uma história sólida e de luta por aquilo que mais amamos fazer que é compor e tocar metal extremo. Metal é arte! E a arte é necessária para a nossa sobrevivência e resistência nesse mundo!

Suas composições são elaboradas e calcadas numa ideologia pagã regada a jornada das origens sul-americanas, assim como a utilização, desde muito cedo, da língua portuguesa. Qual a importância do aprofundamento desses temas para o Miasthenia nestas duas frentes: a temática e a linguagem?

Susane Hécate – temática e linguagem são partes fundamentais da identidade que construímos desde o início do Miasthenia com a intenção de expressar nossos sentimentos pagãos, anticoloniais e anticristãos. Como historiadora eu trouxe para as composições líricas a minha experiência com fontes históricas de resistência indígena ao colonialismo. Essa temática é inesgotável e seu forte conteúdo ainda nos inspira a compor metal extremo. Mitos e rituais indígenas pré-colombianos também são uma fonte de inspiração para a música de resistência que desejamos expressar.

Particularmente, acho a demo “Faun – Trágica Música Noturna” (1996) uma obra prima, é visível que houve algum tipo de transição musical de lá até o seu álbum “Antípodas” (2017). Essas transições, obviamente, são questões que fazem com que a banda amadureça suas composições, mas vocês acreditam que houve que tipo de processo transitório na musicalidade da Miasthenia entre essas duas obras?

Susane Hécate – com o passar do tempo se não houver amadurecimento ou aprendizagem com as experiências adquiridas não faz sentido, tudo se torna muito chato e tedioso. Por isso persistimos como banda, sempre idealizando ou almejando algo mais, porque a música é inesgotável e criatividade é o que nos move. Isso pode envolver também mudanças na formação da banda, mas o Miasthenia é uma banda que foi constituindo sua identidade durante a jornada e amadurecendo a cada álbum, sempre buscando melhorar a qualidade de nossas gravações.

Hoje, nos parece, é muito mais “fácil” lançar material físico, em contrapartida é perceptível a ruina do consumo deste mesmo material físico. Como vocês percebem essa dicotomia em que o underground vive nessa navalha da atualidade?

Ariadne (foto de divulgação)

Susane Hécate – as mídias musicais se diversificaram muito e para difundir sua música é preciso acompanhar a evolução das plataformas digitais. O CD e o vinil ainda não saíram totalmente de linha, então as bandas continuam lançando também nesses formatos para aqueles que apreciam e colecionam materiais físicos. Hoje, temos mais recursos para difundir a nossa música, se dependêssemos só do CD, como antes, continuaríamos mais restritos, então com as plataformas digitais conseguimos uma maior alcance e isso é positivo.

Sobre o suporte que uma banda, claro, guardando as devidas proporções, como a Miasthenia recebe para concretizar seus objetivos quanto a estrutura para compor, ensaiar, gravar etc. vocês consideram que é uma relação forte ou muito distante do ideal?

Susane Hécate – somos uma banda que desde o início conta com o suporte de gravadoras apenas para o lançamento físico dos álbuns e isso com certeza sempre nos estimulou a continuar produzindo. Contamos com o apoio de grandes gravadoras brasileiras como a Somber Music, a Mutilation e a Misanthropic Records. Mas os custos financeiros que envolvem composições, ensaios e gravações sempre foram da própria banda. No cenário de metal extremo é bem difícil que uma banda consiga todo esse suporte de uma gravadora. Isso não é o ideal, mas é reflexo também de um cenário musical muito underground onde a maioria não consegue viver plenamente de música.

Há vinte e dois anos atrás, Miasthenia lançava seu primeiro álbum, ali se concretizava um divisor de águas para a banda? Como essa obra foi recepcionada e que tipos de ônus e bônus foram colhidos por aquele Debut?

Susane Hécate – o lançamento do álbum “XVI” é um marco em nossa carreira, porque é o começo de tudo, ali conseguimos dar início a uma proposta que ainda nos motiva a continuar compondo. É um álbum ainda aclamado e que teve uma grande repercussão. As cópias lançadas pela gravadora Somber Music se esgotaram em pouco tempo e só em 2017 foi relançando pela Misanthropic. Ainda recebemos depoimentos de que esse álbum marcou época para várias pessoas, são memórias afetivas e de respeito daqueles que dizem ter escutado muito nossa música e o quanto isso lhes impactou pela sonoridade e especialmente pelas letras em português e a temática indígena pré-colombiana. Muitas pessoas dizem que este álbum despertou o interesse delas pela história da América pré-colombiana e que por isso foram em de livros para conhecer um pouco mais dessa história, então isso mostra a força e importância desse álbum. Para muitos o XVI é álbum diferente e ousado que mostrou outras possibilidades para o black metal brasileiro. Temos um grande orgulho desse álbum, é uma marca de nossa identidade.

Como tem sido a relação da Miasthenia com a cena sul-americana? Visto ser uma banda que preza, de maneira extensiva com a cultura ancestral do continente, esses laços tem se estreitado, feito conexões e permutas de conhecimentos a respeito destes aspectos culturais?

Aletea (foto de divulgação)

Susane Hécate – Sim, desde o início o Miasthenia sempre teve contato com bandas e fanzines de vários países da América Latina. A temática pré-colombiana e de resistência indígena ao colonialismo é bem mais compreendida e apoiada na cena de Metal extremo destes países e isso nos aproximou. Como resultado, em 2017 tivemos a oportunidade de tocar na Bolívia (Santa Cruz de La Sierra).

Recentemente a Suzane participou de um congresso em Bogotá (COL) que tratou em nível acadêmico sobre o underground, nos conte como foi essa experiência, principalmente o fato de ter abordado sobre a presença feminina neste contexto.

Susane Hécate – Sim, esse convite para a realização da conferência de abertura do II Congresso Colombiano de Metal vem como resultado da difusão de um estudo recente, que desenvolvi com Thais Brayner, para publicação na coletânea “Música Extrema: Ruídos, imagens e sentidos” (2022, https://www.pimentacultural.com/livro/musica-extrema), organizada por Cristiane Bahy, Cristiano dos Passos, Lucas Martins Gama Khalil e Rodrigo Barchi. A experiência na Colômbia foi ótima, porque tive a oportunidade de participar e ver de perto o crescimento dos estudos acadêmicos sobre a música metal. Estes estudos no Brasil ainda são bem recentes e pouco reconhecidos nos meios acadêmicos, mas na América Latina há uma rede de pesquisadores muito forte e que cresce a cada dia. Participar na condição de pesquisadora e também de artista é muito importante nesse meio, porque aproxima esses estudos da experiência concreta de quem atua na cena metal há muitos anos. Me sentido muito bem acolhida e prestigiada nesse evento, e isso com certeza foi um grande estímulo para que eu continue produzindo estudos também nesse campo.

O título da minha conferência foi “Feminilidades extremas: gênero, subjetivação e resistência nas letras de autoria de mulheres no Metal Extremo”. Segue um resumo: O Metal Extremo, ao colocar representações femininas (fictícias, mitológicas, reais ou históricas) em movimento nos conteúdos líricos de suas produções musicais, fornece-nos elementos importantes para uma compreensão do modo como o gênero é construído nas suas práticas estéticas mais agressivas, obscuras, violentas e satânicas, promovendo modos diversos de subjetivação de mulheres e homens. Ao desvelar o modo como estas representações se inscrevem na história cultural do Ocidente, mas também na história particular do Rock e do Metal, podemos perceber o Metal Extremo como uma prática complexa e dinâmica de comunicação e de reapropriação cultural de representações de gênero, especialmente no modo como algumas mulheres artistas/vocalistas de bandas de Death e Black Metal se apropriam de símbolos femininos transgressores e abjetos, que há muito tempo povoam o nosso imaginário social, com a finalidade de comunicar sentimentos, visões de mundo, crítica social e outras estéticas de existência para as mulheres. Uma amostra significativa de letras produzidas por essas mulheres (de várias partes do mundo) permite-nos analisar a projeção de “feminilidades extremas” que reagem e resistem à violência patriarcal, performando nas letras como assassinas, criminosas, insubmissas, livres, revolucionárias, guerreiras, anti-cristãs, bruxas e amantes de demônios. Ultrapassando os limites do aceitável dentro do sistema de gênero moderno/heteropatriarcal, desnaturalizando a associação do Metal Extremo com o sexismo e a misoginia, estas representações líricas revelam o modo como algumas mulheres “brincam com o gênero” ao se apropriar de estéticas e temáticas agressivas, horrendas, insanas, obscuras, mórbidas, satânicas e pagãs, projetando modelos de feminilidades extremas que tensionam as imagens hegemônicas – brancas, vitimizadoras, submissas, angelicais ou hipersexualizadoras do feminino – amplamente difusas no Metal Extremo. Estas representações femininas apontam, portanto, para tensões, disputas, negociações, rupturas e resistências dentro do próprio campo das representações de gênero que conformam as estéticas de Death e Black Metal, desnaturalizando a associação ainda reinante entre masculinidades, violência e agressividade, ao mesmo tempo em que produzem uma associação do feminino com o poder, a liberdade, a força, a dominação, a violência e a agressividade.

Aproveitando a questão anterior trarei aqui duas indagações: uma sobre a atual formação da banda, que, se não estou enganado, é a primeira vez que tem sua maioria formada por mulheres. A segunda é sobre essa presença feminina no metal extremo, como a banda e principalmente a Suzane, enxerga essa presença no que tange os obstáculos, preconceitos, dificuldades etc.

Thormianak (foto de divulgação)

Susane Hécate – sim, sempre foi um desejo meu tocar com mulheres no Miasthenia e agora finalmente tivemos essa oportunidade de trazer duas grandes musicistas para nossa jornada. Ariadne (Ex-Valhalla, baterista) e Aletéa (baixista) são mulheres que tem afinidades conosco e que admiramos muito como musicistas. Obstáculos e dificuldades para as mulheres existem em vários espaços de atuação, e nós resistimos em todos eles, então o Metal não é exceção, embora estejamos falando de uma comunidade que vem se transformando e onde as mulheres já estão atuando há muito tempo.  São inúmeros os mecanismos de discriminação e inferiorização das mulheres na cena metal e isso está tão naturalizado nas mentes de várias pessoas que passa sem qualquer questionamento. Mas acredito que a nossa presença no metal extremo já é em si uma grande resistência e já diz muito sobre o que somos e o que queremos. Jamais nos renderemos a qualquer discurso ou prática sexista que venha impor limites às nossas ações no Metal, porque somos cientes de que qualquer imposição (como natural) do que seja feminino ou masculino é uma mera construção histórico-cultural carregada de vontade de dominação, e que por isso mesmo tudo pode ser transformado e ressignificado. Situações extremas exigem respostas extremas, então produzir este tipo de música tem tudo haver com nossa resistência, somos seres livres, sempre em luta por nossa existência! Importante dizer que não estamos sozinhas nisso, temos grandes parceiros e parceiras nessa jornada!

Tem aproximadamente cinco anos que a banda lançou seu último álbum de estúdio, o “Antípodas”, de lá pra cá foram lançados materiais que posso chamar de periféricos como o “Sinfonia Ritual” que traz releituras sinfônicas de músicas que já foram lançadas pela banda em álbuns anteriores e alguns relançamentos. Dito isso, quais os projetos da banda sobre os futuros lançamentos, como estão às composições e sobre o que abordará nas letras deste próximo material?

Susane Hécate – desde 2019 estamos trabalhando nas composições de um novo disco. Durante o ano de 2020, no isolamento da pandemia, continuamos produzindo e escrevi uma ficção histórica em prosa para a musicalização das letras. A temática gira em torno de eventos históricos que vão da época pré-colonial, com caçadores e guerreiros dos tempos das cavernas, até o período colonial com a “Guerra dos Bárbaros”, uma das maiores rebeliões indígenas “tapuias” contra os colonizadores portugueses, entre os séculos XVII e XVIII, no nordeste brasileiro. Ainda nesse contexto abordamos o tema da demonização e esquecimento dos saberes, rituais e memórias ancestrais indígenas, tudo envolto em uma trama de resistência, onde a última xamã de uma antiga etnia indígena é acusada de bruxaria, julgada e aprisionada pela Inquisição. Até 2021 estivemos trabalho na primeira versão da pré-produção desse disco com o apoio do baterista Nygrom. Em 2022, com as novas integrantes da banda, retomamos todas as composições e fizemos mais uma música num segundo processo de pré-produção. No momento estamos fazendo os últimos ajustes de composição para dar início às gravações. No próximo ano (2023) pretendemos lançar esse novo disco cujas composições variam do mais épico, obscuro e brutal Blackened death metal ao mais intenso heavy metal.

Quais os álbuns, demos ou mesmo bandas tem tocado nos aparelhos da Miasthenia ultimamente? Vocês se interessam pelas bandas mais novas, pelas mais velhas… Existe um sentimento de pesquisa sobre o que tem sido composto no Brasil e fora, por exemplo?

Susane Hécate – sim, eu escuto bandas novas e velhas, tudo depende do quanto elas podem me agradar e estou sempre disposta a conhecer o trabalho de novas bandas. Como estive recentemente na Colômbia, tive a oportunidade de conhecer várias bandas de lá e que tenho escutado como UnderThreat, Corpus Calvary, Theres no Savior, III, Ekinoxio, Sulphuris, Vitam et Mortem, Masacre e Neurosis (presente da Living Metal producciones). Além disso, tem a minha playlist Keyboards in Metal (By Susane Hécate) no Spotify do Miasthenia, com várias bandas de death e black metal, especialmente dos anos 1990, que vocês podem conferir:  https://open.spotify.com/playlist/6ASJ8CqIh8SaysvIad2AX7?si=77d48c7c66b149f0.

Quero aqui deixar meu sincero agradecimento por essa nobre participação nas páginas da Lucifer Rising, desejamos sucesso e prosperidade na jornada e mais força para sustentar esse alicerce robusto do Metal Negro feito no Brasil, deixo o espaço aberto para o que quiserem proclamar.

Susane Hécate – uma banda de black metal já nasce sob o signo do cancelamento. Persistir, por tantos anos, numa banda do estilo, não é mera teimosia ou arrogância, mas sim uma necessidade de expressão extrema para situações, sentimos e concepções extremas que vivenciamos diariamente. É preciso muita coragem, força e consciência para continuar assumindo uma imagem ligada a uma estética artística/musical agressiva, maldita, obscura e profana que ainda provoca medo, repulsa e desconfiança nas pessoas mais ignorantes e que se enganam a nosso respeito. Por isso mesmo, o Miasthenia é uma jornada! Enquanto o mundo continuar nos dando razão/inspiração para isso, seguiremos em expressão! Agradecemos o grande apoio da Lucifer Rising, e lhes desejamos vida longa e muita resistência nessa jornada pela música extrema!