Pode-se dizer que vivemos em um momento “sui generis” na história da humanidade. Se até pouco tempo atrás demorávamos cerca de 30 anos para perceber uma mudança de geração, 10 anos pra uma mudança de tendência cultural e algumas centenas de anos para uma mudança de período histórico, a verdade é que agora nada mais é previsível.
Com o advento do que pode vir a ser chamado de “era da informação”, permeado pelo conceito do “mundo líquido” de Zygmunt Baumann, parece que, assim que começamos a assimilar um novo paradigma, uma nova estrutura, essa já se desfez e o algoritmo nos coloca pra correr atrás da próxima tendência…Ou da próxima ferramenta de estimulo dessa tendência.
A autora Shoshana Zuboff, em seu “A Era do Capitalismo de Vigilância”, advoga que a máxima que dizia que “quando você não paga pelo produto, o produto é você”, já está superada e, atualmente, se você não paga pelo produto, você faz parte do grupo de controle que determina o próximo produto, seja ele um carro, um remédio, um eletrônico… Ou uma ideologia política.
Mas o que tudo isso tem a ver com o UNDERGROUND? Bom, sem mais rodeios, esse texto trata-se de mera opinião e todo argumento trazido ao debate é válido, mas o meu entendimento de “underground” é diretamente relacionado ao “do it yourself”. Isso: “faça você mesmo”.
É isso que eu via desde os anos 80, quando chegávamos ao cúmulo de fabricar pedais para guitarra, através de esquemas de revistas de eletrônica. E o conceito todo era atrelado ao DIY, vejam bem:
-Fanzines feitos de colagem e datilografados, posteriormente xerocados;
-Capas de demo-tapes no mesmo modo acima;
-As próprias bandas carregavam e montavam seu equipamento
-Os shows eram organizados por fãs, zines ou por outras bandas.
-Os flyers de divulgação, releases, fotos, eram criados, elaborados e confeccionados pelos próprios produtores, fossem eles bandas, zines ou distros.
E assim se criava todo um conceito de comunidade. Tudo era entrelaçado. As partes se aproximavam pelo objetivo comum: Só o fato de você ver alguém com uma camiseta de uma banda que você gostasse, já era suficiente pra criar um laço e estabelecer uma conversa.
E, nesse período, a gente tinha uma ilusão: Quando o mundo tiver acesso à informação tudo vai mudar! Toda nossa revolta vai tomar corpo e um mundo melhor vai surgir!
Mas então… O que aconteceu? Bom, não quero falar de política, ideologias ou crenças nesse texto. Quero falar do underground.
Claro que muita coisa melhorou: antigamente você não tinha como se aperfeiçoar num instrumento, seja pela carência de professores especializados, seja pelo preço. Hoje você aprende tudo muito fácil pela internet.
O mundo ficou menor, também… A gente consegue gravar um material com relativa qualidade e fazer chegar ao mundo todo, instantaneamente. Consegue referencias para locais de show, evitando muitas furadas. Consegue até conversar, diariamente, com ídolos que, antes, você sequer imaginava ver um dia.
O que se perdeu? EU acho que se perdeu o sentimento. Aquele senso de comunidade que te dava um pertencimento. Hoje você não precisa mais conversar com o cara da camiseta da banda que você não conhece… É só anotar o nome da banda e procurar no Google.
Hoje você não precisa mais fazer flyers e espalhar os flyers dos seus amigos. Basta contratar uma assessoria.
Não precisamos mais da garagem do amigo, onde se reuniam 3 ou 4 bandas, dividindo equipamentos para ensaiar. Basta alugar um estúdio e você nem precisa olhar na cara dos membros da banda que está saindo.
Infelizmente, a paráfrase “tempos difíceis formam um underground forte. Tempos fáceis formam um underground individualista” parece fazer muito sentido hoje.
E tudo isso não se trata de uma simples critica de um velho cansado e saudosista. Trata-se de um sentimento de medo, por parte deste mesmo velho cansado e saudosista.
Medo sim… Medo de que esse ambiente tão importante na minha vida, um dia venha a acabar. É… Acabar. Subsistir só o mainstream. Virar só musica e moda. Não encampar mais um estilo de vida, um comportamento e uma maneira rebelde e contestadora de encarar o mundo.
Hoje já estamos indo por um caminho de “viés de confirmação”, onde anunciamos, orgulhosamente, um show para 100 pessoas como “sold-out” e uma tiragem de 50 k7 como “esgotada”. Onde anunciamos uma turnê bancada do próprio bolso, dependendo de cada centavo, como “turnê pela Europa”. Onde nossa “assessoria” publica informações sobre a nossa banda, de como ela é “imprescindível e insuperável” e nem a gente acredita no que está escrito. Onde você não pode criticar algo muito mal-feito pra não “magoar” banda ou selo…Mesmo que essa critica seja construtiva.
A imagem que me fica é a de que estamos nos enganando. Estamos querendo acreditar numa realidade em que as bandas, selos, mídia, pubs, são grandes e não devem nada pra ninguém. E se não devem nada pra ninguém, não precisam apoiar ninguém. Pode ficar cada um na sua bolha que ela vai durar eternamente.
Vejam bem, eu não quero desmanchar o castelo de cartas de ninguém… Mas será que não é hora de acordar? Enquanto ainda é tempo?
Será que não chegou a época de cooperar mais do que competir? “Quando a maré sobe, levanta todos os barcos”, dizia um mestre de arte marcial. E, nos próximos textos, pretendo mostrar que, sim… Dá pra rolar. E dá pra ser autossustentável.
Quero mostrar bandas, ralando em seus ensaios e gravações. Quero falar de bares que oferecem uma condição decente pras apresentações. Quero falar de produtores de eventos que respeitam público e bandas. Quero falar de fanzines, de webzines, de programas que sejam feitos por quem ama e mantém vivo o underground!
Chega de assessoria, chega de pagar “views” no youtube, ouvintes no spotify e seguidores no instagram. Vamos mostrar o “do it yourself”, fazendo nós mesmos! Juntos a gente pode conseguir! Ou mostrar que, realmente, era só um viés de confirmação. Ou o fim de um ciclo.
Quem quiser, de alguma maneira, participar – SE alguém quiser participar –, falando sobre sua atuação no underground, “do it yourself”, seja correria de banda, zine, selo, organização de evento, por favor faça contato comigo pelo e-mail warfarenoiseproject@gmail.com