Thrash Metal parte 16

Crossover Thrash no Brasil, como foi estar entre dois paradoxos.

Dark Reflections

Não há como falar de Crossover no Brasil sem atrelar tudo isso a carreira do Ratos de Porão, banda que vai surgir na nata do movimento punk Nacional em 1980, quando estes tiveram contato com as primeiras bandas do estilo e tudo que chegava por aqui era de um modo bem distorcido. Há relatos que diz que a apreensão sobre o que era ser punk naquela época aqui no Brasil era muito peculiar, porque foi de uma percepção muito distorcida do que seria na Inglaterra, por exemplo.

O Ratos de Porão se formou basicamente de maneira extremamente amadora, pois, além dos integrantes não terem nenhuma intimidade com os instrumentos, começaram a tocar de maneira improvisada, sem praticamente nenhum equipamento, além de serem caros, estavam muito distantes de sua realidade. Seu primeiro baterista, Roberto Massetti (Betinho) disse que sua primeira bateria foi feita usando vasilhames de lixo.

Os meios de comunicação dos anos 70 aqui no Brasil traziam informações do movimento punk internacional, mas essas informações eram bem distorcidas e davam a entender que o punk era um movimento ligado a agressividade e a violência, mesmo porque o visual dos jovens estava atrelado a essa agressão ainda que fossem visualmente. Aos poucos, segundo esses relatos, foi possível ter contato também sonoro com o Punk Rock do Ramones e Sex Pistols, alguns álbuns foram lançados por aqui e depois o surgimento de lojas especializadas na galeria do rock em São Paulo.

Ratos iniciou como uma banda de Punk Rock e sua primeira formação era: Jão (vocalista e guitarrista), Roberto Massetti (Betinho, baterista), Jarbas Alves (Jabá, baixista) no distrito de Jaguara. Com essa power trio que a banda começou a dar seus primeiros passos quando tocaram num festival específico do estilo em 1982 com mais 19 bandas no SESC Pompéia chamado “O Começo do Fim do Mundo”. Em 1983, a banda ganha mais um integrante, Rinaldo (Mingau) que assume uma segunda guitarra e a banda participa de um split4way chamado SUB, lançado pelo selo Devil Discos – Ratos de Porão / Cólera / Psykóze / Fogo Cruzado – “SUB” 1983 (Devil Discos) – com esse lançamento, provavelmente o primeiro do gênero lançado no Brasil, a banda juntamente com outras criam a expectativa para o desenvolvimento do cenário do punk nacional. Após o lançamento deste material o baterista Betinho resolve sair da banda e Jão passa a tocar bateria quando eles convidam o João Gordo para participar como vocalista, curiosamente eles haviam visto João cantando como Backing vocal em outra banda em um show e achou a performance dele muito energética e peculiar, para Jão, cantar não seria mais o mesmo tocando bateria e a banda sentiu a necessidade de ter um vocalista independente.

O primeiro álbum da banda foi lançado em 1984 e já dava indícios que as coisas começariam a mudar, os caras queria tocar mais rápido, mais agressivo e, segundo depoimento dos mesmos, eles ainda não tinham referencia sonora sobre tocar mais rápido, tocar mais rápido para o Ratos era algo natural deles, mas que foram relacionados ao estilo Hard Core e por isso eles já passaram a ser chamados de traidores do movimento Punk por isso, ao que tudo indica, havia uma dissidência marcante que separava o movimento punk da cena hardcore, ainda que, ideologicamente, ambas levassem ao mesmo lugar.

“Crucificados pelo Sistema” 1984 (Punk Rock Discos), primeiro álbum não chegou a ser lançado oficialmente em um show naquele momento, também o movimento punk em São Paulo havia entrado em colapso com excesso de brigas, rixas e criação de gangues. Se tornou insalubre qualquer evento de cunho sonoro, também a banda Ratos de Porão decidiu parar por um tempo. Foi nesse mesmo ano que saiu uma música do RDP numa coletânea internacional, com outras bandas brasileiras e fez com que o som e o nome da banda circulassem por vários países e tornado a banda bem notória.

Em 1985, a banda retornou com sua formação original, Betinho de volta a bateria, Jão guitarra e vocal e Jabá no baixo gravaram mais um disco ao vivo nessa reunião. Esse registro foi ao lado da banda Cólera. Nessa mesma época João Gordo retorna a banda e RDP começa a assumir sua veia crossover Thrash influenciados pelo D.R.I. e Broken Bones trazidos pelo retorno de João Gordo, a banda começa a se identificar com o peso e a velocidade das músicas e com a cena Metal a essa altura que parece um terreno mais fértil para o RDP que passa a incorporar o crossover como sua nova vertente.

Entrando no território do Metal, RDP assina com uma gravadora especializada em Metal a Cogumelo Records (já abordada aqui algumas vezes) para lançar seu disco mais pesado até então o “Cada Dia Mais Sujo e Agressivo”, 1987. Pela primeira vez a banda lança um material em duas versões, português e inglês, talvez algo inédito no mundo da música underground nacional. A circulação da banda no meio Metal e sua estreita amizade feita com os integrantes da banda Sepultura, fez com que eles conseguissem o contrato com a Cogumelo e passasse a figurar muito mais na cena Metal que propriamente na cena Punk, ainda que eles quisessem se manter neutro, nem um, nem outro, o som da banda teve muita aceitação na cena metal, ainda mais que os shows eram mais cheios e aparentemente mais pacíficos que os eventos da cena Punk da época.

Ratos de Porão foi uma banda que conseguiu circular muito bem nas duas cenas, porém, devemos lembrar que boa parte da cena Punk hostilizou o Ratos por considerá-los traidores. A repercussão do novo álbum atravessa as fronteiras do Brasil, assim como a estreita amizade com o Sepultura, que, naquele momento é a sensação do Thrash Metal brasileiro, alavancam o RDP até a gravadora alemã Roadrunner (no Brasil o selo era a Eldorado) levando-os para gravar num estúdio na Alemanha simplesmente com o produtor premiado por seu trabalho com o Sodom, Harris Johns. Essa gravação foi do simplesmente melhor álbum de crossover já lançado neste planeta (em minha opinião, claro!) chamado “Brasil”, 1989 (Eldorado Records), que traz simplesmente as músicas mais marcantes, perfeitas, extremas e inspiradas da história, inclusive da história da banda, nem mesmo o seu sucessor foi tão exitoso quanto esse trabalho.

As letras do álbum Brasil tiveram um impacto, porque falava com maestria das situações sociopolíticas, quase uma crônica sobre a situação do nosso país pós ditadura militar e era uma reportagem perfeita e satírica sobre o que podemos chamar de país obsceno. O álbum foi uma obra prima em muitos aspectos, diria que, a capa era o principal chamariz para o disco e que ela é muito atual após trinca e cinco anos de lançamento dele. “Brasil” foi o álbum mais pesado e mais próximo do Thrash Metal que o Ratos conseguiu chegar naquela época, provavelmente foi também o álbum que fez com que a banda fosse muito mais conhecida no próprio país… Ratos de Porão era uma banda que havia ganhado a fama do mainstream brasileiro que renderia uma notoriedade muito grande, principalmente ao vocalista João Gordo, que vai passar a ser visto como uma personalidade, inclusive entrando numa emissora de TV voltada para o público jovem, a MTV Brasil.

Voltando a falar da capa, não podemos esquecer de citar o autor dela, o quadrinista Marcatti, que também viria a ser autor da capa do álbum seguinte “Anarkophobia”, 1991 (Eldorado). O “Anarkophobia também foi gravado na Alemanha com o produtor Harris Johns e pode proporcionar ao Ratos uma turnê na Europa, essa turnê foi o fim da relação da banda com o Baterista Spaghetti que, segundo relatos dos integrantes, a convivência na turnê se tornou insustentável por causa da presença da namorada do baterista naquela época em plena turnê com os rapazes da banda, todos entraram num clima de zombaria com Spaghetti e a situação ficou insustentável. De volta ao Brasil RDP conseguiu um novo baterista que fazia parte da banda Psychic Possessor, Boka assumiu e já gravou o álbum “RDP Ao Vivo”, 1992 (Eldorado).

É muito importante fazer esse recorte, pois o crossover no Brasil não foi muito promissor, poucas bandas puderam ser vistas com esse rótulo, e na verdade a maioria eram bandas de Hardcore que se confundiam com o Crossover Thrash, porém, na minha leitura, não foram bandas que conseguiram transitar tão bem nos dois cenários como o Ratos de Porão, até podemos dizer que Lobotomia e Excomungados, tiveram alguma penetração na cena Metal, mas não com a mesma abrangência do RDP. Por isso terei dificuldades em citar outras bandas dos anos 80 e 90 na cena Crossover Thrash do Brasil.

Em 1994, Ratos de Porão lança seu disco mais próximo da ideia sobre Thrash, é um disco que, em se tratando das habilidades musicais da banda, ele é bem técnico, cheio de climas, músicas mais longas e mais subjetivas que seus discos anteriores, fica bem claro a influência da musicalidade do Thrash Metal que abarcou a década através de bandas como Sepultura que, não devemos esquecer, eram seus melhores amigos e a influência mútua era inevitável. “Just Another Crime.. In Massacreland” foi um álbum todo cantado em inglês e em se tratando da carreira do RDP era algo inusitado, mesmo os álbuns anteriores de estúdio já terem sido lançados em duas versões. A carreira deles seguiu muito bem e continuaram a laçar álbuns chegaram a assinar com uma das grandes gravadoras da cena metal a Century Media, para lançar seu álbum “Onisciente Coletivo” em 2002, que também teve versões lançadas por outras gravadoras como a norte-americana Alternative Tentacles. Os músicos da RDP falam que esse foi um dos discos mais viscerais que eles já gravaram, um dos mais pesados e com maiores influencias do Thrash Metal.

Aqui não tenho pretensões de abordar toda carreira do RDP, mesmo porque meu interesse com os artigos é mesmo sobre recortes, apesar de já ter me empolgado com uma banda ou outra, não é essa a intenção. Considero a carreira do RDP muito bem sucedida, particularmente eu gosto e conheço poucas coisas da sua discografia que, ficou meio que congelada no “Anarkophobia”, os álbuns depois desse eu só ouvi por experiencia passageira e não fui capaz de reter sua sonoridade, meu gosto sempre esteve voltado para outros tipos de som, não necessariamente com a abordagem que eles farão no decorrer da carreira principalmente sobre as bandas da cena punk, mas o papel que eles terão de atuarem numa transição de estilos muito interessante proposta pelo Crossover, transforma-os em principais artistas desse estilo por aqui.

Como podemos ver em outros momentos a cena é sempre regada a muitas drogas, muitos músicos estão envolvidos com o consumo excessivo de drogas, inclusive prejudicando seriamente sua saúde, isso ocorreu com alguns integrantes do RDP e o mais notório foi como o próprio João Gordo que passou por cirurgias e por recuperação pelomenos por duas vezes. Esse tipo de episódio nós já vimos com inúmeros músicos tanto do Thrash como eu diversos outros estilos de Metal.

Transgredir era uma forma de expressão da maioria das bandas ligadas ao universo da contracultura em que o Punk estava inserido e isso foi conduzido também ao Crossover facilmente, essa influência da crítica social, da ruptura das regras sistêmicas e discursos contrários a este mesmo sistema foi muito bem-feito pelo RDP junto com o amadurecimento da banda. Como já citado, houve outras bandas que foram consideradas crossover, porém eu não consigo classificá-las como tal, a minha percepção sobre a influência do metal sobre essas bandas foi muito imperceptível e, talvez as bandas mais recentes, digo, do século XXI como Bandanos, Possuídos pelo Cão ou mesmo D.F.C. fundada ainda nos anos 1990.

Provavelmente D.F.C. (Distrito Federal Caos) foi uma banda que se aproximou mais do legado do Ratos de Porão, mesmo assim eu sempre enxerguei a banda mais próxima da cena punk que metal, apesar das portas que se abriram para o RDP e o DFC pode entrar por essas portas abertas e se apresentar ao lado de bandas de Metal e fazer seu nome com essas mesmas bandas. Claro que é perceptível que o Crossover era um dos atributos do DFC e isso era muito peculiar quando abordadas as bandas norte-americanas, por exemplo que tinham seu pé em uma cena e na outra, as vezes um material os dois pés estavam em um dos dois, dependia muito do período e das relações dos músicos com essa mesma cena e as amizades formadas ao longo da carreira, isso tudo era muito determinante.

D.F.C. conseguiu lançar seu primeiro álbum também pela Eldorado, mesma gravadora do RDP, e em 1994 lançaram “Tchan Nan Nan Nan”, como costumo muito depor nos meus artigos usando o espaço como um lugar de opinião própria, DFC nunca foi o tipo de banda que me agradece assim como muitas outras que trouxe aqui neste artigo, por tanto, independente do meu gosto pessoal, farei deste espaço um lugar de registro histórico e, neste caso em específico de citação. Se eu for trazer para minha visão de fato, creio que Lobotomia, por exemplo, seria um tipo de banda que me agradou mais que DFC, e aí estamos novamente tratando de gosto pessoal e não de imparcialidade. Lobotomia se formou no final de 1985, e logo vai ganhar notoriedade por mesclar o punk e o metal e lançar o primeiro disco do gênero que veio a ser chamado de Crossover mais tarde, por tanto, lobotomia já tinha acesso a esse tipo de sonoridade.

Caio vocalista, Adherbal guitarrista, Grego na bateria e Zezé baixista gravaram de forma independente o primeiro álbum de título “Lobotomia” e tiveram a New Face Records como colaboradora na prensagem dos LPs. Este disco do Lobotomia é possui uma influência do metal muito marcante, inclusive uma sonoridade que beira o sombrio, talvez muitos o considerem um disco com muita influência da cena pós-punk que tem uma vertente muito forte com o soturno. De qualquer modo é um disco que cadência e é realmente soturno.

Lobotomia lançou um segundo álbum em 1989 pela Cogumelo Records, que parecia um álbum mais visceral, porém muito calcado na veia punk com influências do Metal, não necessariamente Hardcore… o selo especializado em Metal, até então, abriu espaço para diversas bandas de estilos diferentes do Metal, além do mais, o RDP era uma boa referência para o estilo e o Crossover poderia ser um bom nicho a ser explorado comercialmente. A essa altura a formação da banda já não era mais a original, Zezé e Caio já não faziam mais parte da banda, lançaram o segundo álbum e algum tempo depois a banda se dissolveu, só retornando no ano de 2004 com novos integrantes e apenas o baterista Grego como membro original.

Com esses eu encerro esse capítulo sobre o Crossover Thrash no Brasil, reforçando a tese que poucas bandas poderiam de fato figurar nessa narrativa, por considerações pessoais e como tal o espaço está sempre aberto, nos seus canais próprios, para expressarem as outras histórias e outros pontos de vista. Em se tratando de Metal, eu teria poucas bandas de Crossover entre os anos 1980 e 1990 para citar e, mais uma vez todo esse relato sobre o Thrash que pretendo é muito mais sobre minhas memórias afetivas que qualquer outra coisa.

Sem deixar de lado, vou aqui garantir mais uma lista importantes de discos que são essenciais para formação do Crossover Thrash brasileiro:

Ratos de Porão – “Brasil” 1989 (Estúdio Eldorado)

Ratos de Porão – “Anarkophobia” 1991 (Estúdio Eldorado)

Ratos de Porão – “RDP Ao Vivo” 1992 (Estudio Eldorado)

Ratos de Porão – “Onisciente Coletivo” 2002 (Alternative Tentacles)

Ratos de Porão – “Necropolítica” 2022 (Shinigami Records)

Lobotomia – “idem” 1986 (New Face)

Lobotomia – “Nada é Como Parece” 1989 (Cogumelo Records)